Um celeiro de mitos


Sempre achei muito curioso pensar no tempo em que muita coisa e muitos eventos aconteciam sem nenhuma câmera como testemunha a registrar o que se passava. Fico com a impressão de que essa falta de imagens é fundamental para a construção e propagação de certas mitologias no futebol; afinal, a história oral e a memória de cada um, por vezes, constroem “fatos” muito mais charmosos.

Uma história clássica evidencia, pra mim, isso que estou falando. Trata-se do inacreditavelmente lindo gol que Pelé fez no estádio da Rua Javari no dia 2 de agosto de 1959, num jogo pelo Campeonato Paulista onde o seu Santos enfrentava os donos da casa, os donos da Mooca, o Juventus. O jogo já estava 3 a 0 pro time da baixada quando Pelé recebeu um cruzamento de Dorval na entrada da área, dominou já tirando o primeiro marcador e emendou três chápeus seguidos, em três jogadores diferentes e sem deixar a bola tocar o chão, sendo o último o goleiro. Com o gol já vazio, finalizou de cabeça, transformando em aplausos as vaias que recebia da torcida adversária, e correu pra comemorar dando, pela primeira vez, seu célebre soco no ar. Para Pelé, foi o gol mais bonito de sua carreira. Para mim, também. E exalto a beleza do lance com uma certeza e confiança que jamais poderia ter se ele estivesse disponível para ser visto, revisto e analisado.

Essa certeza ficou ainda mais forte em 2008, quando passei a frequentar a Javari e o Bar do Giba (na mesma rua, próximo ao estádio), onde torcedores juventinos se encontram antes e depois dos jogos. Por ali, todos viram o gol. Alguns estavam em campo e garantem terem sido um dos marcadores deixados para trás por Pelé; outros contam com detalhes os acontecimentos vistos da arquibanda; e ainda há aqueles, com 30 ou 40 anos, que afirmam sem pestanejar serem também testemunhas do fato. É como se esse testemunho fizesse parte do ser moquense. É algo que nasce com o juventino.

Porém, no dia 5 de março de 2008 eu entenderia que tudo vai muito além da falta de registro, da memória das pessoas e da mitologia criada. A Javari é capaz de construir fatos inquestionáveis para quem os vive. Eu entendi que toda a relativização e análise da construção do mito é muito bacana, mas quando você consegue fazer parte, estar dentro é transcendental. E naquele dia eu estive.

Comecei o dia, uma quarta-feira, sem nenhuma pretensão de ir a um jogo de futebol, ainda mais à tarde (na Javari não há iluminação artificial), período em que tinha outras coisas a fazer. O Juventus vinha de um bom ano de 2007, quando havia conquistado o título da Copa Federação Paulista de Futebol, sob o comando do técnico Márcio Bittencourt, numa final emocionante contra o Linense, onde o título foi garantido com um gol no último minuto de jogo. Essa conquista rendeu uma vaga para uma participação inédita juventina na Copa do Brasil.

É então que chegamos àquela quarta-feira, dia 5 de março; dia, enfim, da estreia juventina na Rua Javari na segunda maior competição nacional. No entanto, o provável entusiasmo havia levado um enorme baque. Uma semana antes, no jogo de ida do confronto entre Juventus e Coruripe, time da cidade homônima no estado de Alagoas, uma sonora derrota do time da Mooca: 4 a 1.

Mesmo assim, fui convencido de que presenciar pela primeira vez, e sabe-se lá quando acontecerá de novo, o Juventus na Javari pela Copa do Brasil era um fato histórico de importância maior do que qualquer outra obrigação mundana. Fomos, então, eu e o amigo que me convencera. Foi a primeira vez que fui à Javari somente pra torcer. Em todas as outras havia a ideia de um documentário e estávamos sempre pesquisando, conversando com torcedores e fazendo algumas imagens. Naquele dia, nem sei bem por qual motivo, fomos sem câmera. Camisa grená com os dizeres “Mooca É Mooca” nas costas, algumas cervejinhas no Bar do Giba, lanche rápido na Esfiha Juventus e, pronto, estávamos na arquibancada com o time entrando em campo. O público não era grande, mas podia ser considerado bom para um pós-goleada numa tarde com promessa de chuva na Mooca.

O jogo começou morno, truncado no meio de campo, parecendo quase impossível um resultado final repleto de gols, como o Juventus desesperadamente precisava. Porém, ali pelo meio do primeiro tempo, o goleiro adversário comete um pênalti. Dedimar, zagueiro e capitão daquele time, cobra com a segurança habitual e abre o placar. A esperança havia voltado. Mas por pouco tempo. Em menos de dez minutos, o Coruripe empata o jogo e, ainda no primeiro tempo, o Juventus tem um jogador expulso. Vamos para o intervalo precisando de quatro gols e com um jogador a menos. Na Javari, apenas lamentações e a constatação de que com aquele time não ia dar; seria eliminado taxativamente da Copa do Brasil e rebaixado no Paulista.

Na volta pro segundo tempo, uma alteração. Surge entre os onze uma figura barriguda, de movimentação lenta, deixando qualquer um descrente de sua capacidade de ainda jogar futebol profissional. Vampeta estava em campo! Ele estava no elenco para aquela temporada, mas não conseguia se firmar no time nem emplacar boas apresentações. Diziam pelas arquibancadas da Javari que Vampeta ganhava por jogo que jogava, que era uma espécie de freelancer do futebol e que isso explicaria a falta de treinos constantes e a não presença em alguns jogos. Bom, o fato é que ele estava em campo e desde o primeiro minuto do segundo tempo jogava com a dedicação de um garoto e liderança do veterano que era. Logo aos três minutos, Lima (aquele mesmo que, com três gols, garantiu o Braga na fase de grupos da Liga dos Campeões num jogo contra o Sevilla) faz o segundo gol juventino e cria um fio de esperança até no mais pessimista dos moquenses. Junto do gol, veio a chuva. Pra ser sincero, um temporal. Todos tentaram se apertar na parte coberta das arquibancadas, o que era impossível. Mas o importante estava no campo. Vampeta conduzia o time; a bola sempre passava por seus pés, seus passes eram precisos, abriam espaços. Ele acalmava a equipe, conduzia o ataque, era o maestro, o Xavi da Javari!

Dez minutos depois veio o terceiro gol e tomar chuva ou não virou fato irrelevante. Que viesse mais água e mais gols! Mas Kanu, atacante e principal referência ofensiva do time, perdia gols e deixava a torcida bastante irritada; gritos de “tira o 9” eram constantes. Só que todo mundo sabe que o craque se faz na adversidade. Mais dez minutos de jogo e, aos 22, vem uma bola estourada pela defesa. No semí-círculo, beirando a grande área, lá está Kanu, postado com perfeição. Como uma versão melhorada de seu xará nigeriano, ele domina e vira, num chute inacreditável. Bola no ângulo. Não era difícil encontrar quem, na arquibancada, tivesse perdido o gol por ter virado pro lado, considerando a jogada perdida. Para quem tinha visto, a boca aberta era a única reação. 4 a 1, resultado que levava a decisão para os pênaltis, mas a torcida, claro, já via a vitória como certa. O mais pessimista já esboçava alguma referência a próxima Libertadores.

Mas, como todo grande épico tem seus sobressaltos, o ímpeto do time diminuiu e o Coruripe passou a dominar o jogo. O homem a menos passou a fazer diferença e a catástrofe voltou a parecer iminente. Só que o Juventus é Juventus, e o Coruripe parecia meio baleado, sem saber o que fazer. Dominava a posse de bola, mas não conseguia atacar com objetividade. Foi então que, em meio ao temporal, muito próximo do fim do jogo, um contra-ataque mortal foi finalizado por Kanu. 5 a 1; era a classificação.

Ali, no estádio da Rua Javari, acontecia o inacreditável. Acontecia o que ninguém registrou. Kanu, a jovem revelação que antes levantava suspeitas, era alçado a condição de craque inquestionável. Dedimar era ovacionado como grande capitão e zagueiro de técnica apurada. Lima recebia súplicas da torcida para permanecer no time. E, sobretudo, havia Vampeta; o homem que mudou o jogo e mostrou maestria quando, pela primeira vez em sua carreira, teve a chance de jogar solto, dono do campo, dono da bola e, naqueles 45 minutos finais, dono da Mooca.

A Javari, que um dia se curvou e aplaudiu Pelé de pé, naquele momento se curvava a Vampeta, no melhor jogo da sua carreira. E a Mooca acabara de presenciar a maior virada, o jogo mais épico que aquele estádio já recebeu.

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